quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

36. I de Ilha



ILHA


Naufrago.
Em noite que te não tenho, naufrago.
Sinto-me um náufrago sem os teus braços,
perco-me no mar que os lençóis agitam,
navego nas penas do edredon que me cobre
flutuo em sonhos eivados de sereias,
procuro as tuas coxas como se fossem balsas
e lanço verylighs de desespero.
Mas de manhã,
quando o calor do teu corpo já me inunda
de resplandecentes sois,
somem-se as inquietações.
Não, não és apenas um porto de abrigo.
És a minha ilha.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

35. H de Hoje



Hoje, 14 de Fevereiro


Hoje, quando rasguei a capa
e cobri o teu corpo nu, tremendo
e tu disseste “obrigada”, tive uma visão.
Nesse corpo onde me enleio,
dessa boca onde a minha boca
faz residência,
não deveria haver outra capa
que te cobrisse que não fosse
a epiderme do meu corpo,
que não fossem musicais palavras
de lascívia e desejo.
Por isso, quando fiz tudo ao
invés do que devia
vi-me em mim um São Valentim.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

33. F de Fascínio





És esse pranto de azul povoado de lágrimas
És esse aroma inconfundível de mil iodos
És esse murmúrio marujante das calmas ondas dormindo
És o ribombar do trovão nas indomáveis vagas erguidas
És o sinal da partida para lá do horizonte
És o delicioso fruto do teu próprio ventre
És o campo de batalhas do meu já morto imaginário
És o covil de piratas de negras flâmulas içadas
És o cemitério de condenados escravos e  de cruéis capitães
És a circum-estrada da navegável história
És o museu vivo das galés e das quinhentistas caravelas
És o pasto onde se alimentam de Odisseias escritores
És o canto sumptuoso e tentador de garbosas sereias
És tu mesmo a sereia meio mulher e outra metade qualquer
És essa planície ondulante de invisíveis espigais
És o fado e o destino destas costas que humedeces
És a casa de cantados e temidos adamastores
És o choro de noivas nunca noivadas
És o véu negro de tristes viúvas e mães
És o prazeiroso refresco de amores em corpos ardentes
És essa incógnita profundeza de tetónicas falhas
És o espelho das alvas e soalheiras manhãs
És o manto doirado dos tranquilas crepúsculos
És a cama do rei astro quando o dia lhe finda
És o princípio e o fim da viagem
És fascínio, és vida e és morte.
És mar.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

32. E de Escolhos




Escolhos

Estradas,
errantes caminhos,
enlameadas azinhagas,
becos e ruas,
passos trôpegos,
escolhos.
Homens e mulheres caminhando
carros buzinando,
carroças se esforçando por subir
veredas de água e pó,
bois que baixam os cornos no esforço.
Ruas esconsas,
travessas e avenidas
escadarias e alamedas,
homens e mulheres dormindo
em cartões que se dobram no corpo.
Chuva que molha as calçadas
saltos que se quebram nas juntas,
juntas que puxam carroças,
corpos que sobem curvados.
Homens e mulheres que baixam a cabeça
como se fossem juntas puxando carroças.
Escolhos,
becos,
calçadas,
caminhos insalubres da vida.
Juntas que baixam os cornos
nos entroncamentos sem saberem por onde ir.
Sem abrigo e sem escolhas.
Só escolhos.



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

31. D de dança



Ninguém dança como a abelha

Aquela valsa que dançamos nos salões do Schönbrunn
é já uma ténue memória.
Tal como o tango
nas ruas de Buenos Aires, 
quando aquele rapaz 
de camisa às ricas, chapéu de palha
e lenço com um nó no pescoço
te envolveu num tango figurado.
No fim, bom, no fim ainda lhe dei uma moeda...
Coisa pouca para tanta arte e ele agradeceu.
Depois, comentamos que ele precisaria de umas calças novas
que as que vestia eram-lhe muito apertadas.
E rimos. Rimos muito.
Saímos na escola de samba.
Se bem me lembro, estão a fazer uns dez anos.
Ou dez minutos. Ou terá sido há alguns instantes?
Só me lembro do teu sorriso de morena,
o rebolar das tuas ancas,
e do movimento dos teus pés.
Mexias bem os pés, morena.
E eu, dentes muito brancos, ria. Eu só ria.
E também mexia bem os pés.
Dançamos até uma rumba nas Caraíbas.
Foi na piscina.
De repente,
oh como essas coisas aconteciam de repente,
de repente, uma onda de música invadiu-nos a piscina
e nós,
como se uma mola tivessemos,
saltamos e dançamos a rumba.
Depressa a piscina se tornou um salão de baile,
dançavamos todos,
e orquestra tocava.
Espera!
Não era rumba,
agora me lembro.
Era salsa!
Sim era salsa. Dançavamos todos.
Eramos mais de cem pares, não éramos?
Acho que éramos,
mais de cem!
Bom, uns cem não seríamos, 
mas olha que poucos faltavam,
poucos faltavam,
sim, poucos faltavam.
Já não havia piscina,
Foi em Paris,
aquelas moças vieram pedir-nos para que saltassemos para o palco.
Eu não fui, mas tu sim.
Tinhas um vestido novo,
de saia rodada
e usavas umas cuecas do tempo da tua avó.
O que eu ri.
Eu sempre rio nestas situações,
com os dentes muito brancos
a rir das rendas das tuas cuecas
junto às canelas,
apertadas com uma fita de nastro.
E tu levantavas as saias.
Sempre achei que dançavas can-can melhor do que as outras,
mas nunca te disse nada.
Aliás, como ainda hoje
sou incapaz de te dizer
que és muito melhor
a dançar  a polka
do que aquelas raparigas 
americanas de saia de xadrez
que apareceram cá em casa no outro dia.
Mas pronto,
sei que não te devo gabar,
tu ainda andas à procura da perfeição
e eu respeito-te.
Olha,
agora reparo,
já não és morena
e já não sabes dançar o samba.
Quem te manda passares dias e noites
a ouvir Nat King Cole?
Deves estar a querer desafiar-me para um bolero,
mas eu não posso.
Tu sabes que eu não posso.
Tu bem sabes que me doem os joelhos,
já não sou novo,
não tenho a tua idade.
Ainda ontem to disse
e parece que te esqueceste.
Porque é que eu casei com uma mulher mais nova do que eu?
Se calhar estava distraído,
estava a rir,
eu sempre estou a rir.
Mas tu danças bem bolero,
mesmo quebrando as regras
de te não elogiar,
tenho de confessar:
- Danças bem o bolero.
Tomara eu.
E como rodopias, debaixo do braço do teu par.
e cais-lhe nos braços sem que ele te deixe cair.
És leve.
Mas o que ainda não sabes
é que ontem,
sim ontem,
nem deste por isso.
Cada vez te acho mais distante, mais distraída.
Nem deste conta que ontem
eu dancei um passedoble.
Ah pois dancei,
foi em Sevilha,
mesmo, mesmo junto à Catedral.
Tinha acabado a corrida,
o Manolete, toureou bem não toureou?
Diz-me cá, não gostas de ver o Manolete lidar?
Sim, sim,
sei que gostas,
eram cinco da tarde,
estava sol,
o touro era Miúra,
dizem que era Miúra...
e como Manolete dançava!
Manolete dançava muito bem em frente ao touro.
Eram cinco horas da tarde, em ponto.
Depois fomos dançar,
dançamos até Flamenco.
O Paco toca bem viola.
Toca sim, toca bem viola.
Mas tenho andado a pensar
que vou voltar a ser leve.
Vamos dançar os dois,
naquela pista de nuvens,
vamos dançar danças de todo o mundo,
clássicas e populares,
vamos ser leves
e vestimos aquelas nossas roupas brancas.
Eu visto o meu fato completo.
E não hei-de esquecer a gravata.
Toda branquinha,
toda,
toda branquinha a condizer com a jaqueta.
Calça branca, colete branco, jaqueta branca.
E a camisa é branca. De seda!
E a gravata também.
Já a passaste a ferro?
Sim, pergunto porque vi lá uma ruga
e não se dança ao som de uma harpa
com rugas na gravata.
Não, isso não. Tu sabes. Já tínhamos falado sobre isso.
E os sapatos também são brancos.
São novos. Comprei-os há pouco tempo.
Também comprei meias brancas.
Está tudo no guarda-fato.
Querias-me fazer surpresa, não querias?
Eu também lá vi o teu vestido branco.
Pois levamos, claro que não nos podemos esquecer.
As asas, não é?
Sim as asas.
Levamo-las sim.
Também são brancas.
E dançaremos nas nuvens.
Não te preocupes,
não quero que nos apressemos,
temos uma nuvem reservada,
é só para nós
e a música da harpa...
o que é que queres que o anjo toque?
Sim, pode ser isso,
mas agora desliga-me a campainha
desse maldito despertador.
Essa música não dá para dançar
e ainda te quero mais alguns minutos
nos meus braços.
Desliga,
desliga essa coisa.
Por favor.
Desliga.
Sei que estou a rir,
mas por favor,
desliga essa maldita campainha.