Jato
Não me recuso a escrever o poema que recuso
são os versos que não querem sequências
nem as palavras que não querem ser lançadas
como se jorrassem de uma ininterrupta fonte
desinspiradas, fragmentadas em minúsculas gotas.
Não, não me recuso a escrever o poema que recuso
porque não têm poesia as palavras em jatos.
Quando o luar me invade a janela
e um gato mia no telhado em frente,
sim eu faço um poema ao gato, ou à gata,
ou ao luar, ou simplesmente à janela.
Mas o que tu me pedes é que eu escreva palavras
e, a isso, não me recuso.
Apenas me recuso a escrever o poema que recuso.
Palavras ao gato, como um miado impercetível
palavras ao luar como se assim se iluminassem
palavras à janela, translúcidas,
palavras translúcidas,
como a cortina que não veda a luz do luar,
como que aventadas no éter.
Ainda se a noite fosse de luar...
E tu aí, à espera do meu poema
(mas eu não
me recuso
a escrevê-lo),
porque só me recuso a escrever o poema que recuso.
Pois sim, de amor, pois sim...
eu sei, tudo se resume ao amor,
mas o amor não são palavras. Ou antes, são,
quando as palavras são de amor e há luar.
Ah como é bom dizer-te que te amo
em palavras escritas em verso
e tu a lê-las num ímpeto, palavras em borbotão
amo-te, amo-te,
és uma flor, um jardim,
és uma estrela, uma constelação
amo-te, amo-te
és mel, uma colmeia
és doce, um açucareiro
amo-te, amo-te
palavras, palavras, palavras,
não! não me recuso a escrever um poema de amor
apenas porque me recuso a escrever o poema que
recuso,
mas de amor, nunca me recuso...
como são lindas as manhãs de primavera
e tu és a primavera, as quatro estações
és um raio de luz na minha vida, um farol
amo-te, amo-te
amo o teu corpo de sereia, o cardume
os teus lábios de carmim, o arco-íris
os teus olhos de turmalina, a joalharia
o teu rosto de tangerina, o pomar
amo-te, amo-te
tu és cada uma das coisas e todas ao mesmo tempo
porque só tu me roubas as palavras e me obrigas
a escrever o poema que me recuso a escrever.
©Vítor Fernandes
3/11/2016